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TIMOR MORTIS CONTURBAT ME

JULIANA MONACHESI


Lament for the Makeris (Lamento pelos Poetas, “makers”)
de William Dunbar (tradução por Augusto de Campos)

No staint in erd heir standis sickir;
As with the wind wavis the wickir,
Wavis the wairld vanite;
Timor mortis conturbat me.

(Ninguém na terra pode estar seguro:
Como ao vento vivaz se verga o vime,
Verga-se a vaidade desta vida;
Timor mortis conturbat me.)


“O temor da morte me perturba.” Esse sussurro do poeta chega através dos tempos quase imperceptivelmente assoviado pelo vento na instalação interativa Windmaker, da artista Kika Nicolela. Acionada pela presença do visitante no espaço, uma videoprojeção mostra imagens de uma figura feminina em uma paisagem natural, por vezes uma simples silhueta em meio à amplidão da natureza, outras vezes um semblante perturbado sob o foco fechado da câmera. Essa figura vaga em busca de um lugar ou de um sentido de lugar e termina por se fundir com alguma coisa que é maior do que ela ou maior do que o significado que ela é capaz de abarcar em sua busca.

A narrativa não se desenrola linearmente. A bem da verdade, não é sequer uma narrativa. São várias, dependendo da interação do visitante com a obra. Experiências diversas são determinadas pelo percurso do espectador pelo ambiente da instalação, pela quantidade de pessoas presentes ao mesmo tempo no espaço. Cada um que interage com a obra é o próprio “windmaker” (fazedor de vento) que dá título ao trabalho; e, considerando um sentido mais romântico do título, cada pessoa que interage com a obra é o próprio artista, o próprio poeta, inseguro, perturbado pelo temor da morte. Pois todo artista, todo poeta, aspira à imortalidade. Todo e qualquer mortal preferiria ser eterno.

O ambiente em que se processa o sistema de interação é uma sala escura, com sensores de presença ligados a ventiladores. Cada sensor aciona um ventilador, produzindo o vento necessário para móbiles, feitos de diamantes de cristal, pendurados em diferentes pontos do espaço, se movimentarem. Os fios de cada módulo do móbile estão conectados a interruptores de pressão, que, com o movimento do móbile, acionam teclas de um computador, executando uma função diferente do software de edição em tempo real do vídeo. Quanto mais forte o vento, mais teclas são acionadas e mais frenética se torna a videoprojeção. Quando os móbiles estão em repouso, o último trecho de vídeo acionado se repete até que o “fazedor de vento” seguinte interrompa a calmaria. 

Kika Nicolela é uma artista que transita entre o cinema e as artes visuais. Documentarista e videoartista premiada em vários festivais, é também autora de videoinstalações e séries fotográficas que já integraram diversas exposições, como o Programa de Exposições 2006 do Centro Cultural São Paulo e a mostra Videometry (2006), com curadoria de Paula Alzugaray, na Galeria des Angels em Barcelona, entre outras. Este trânsito entre áreas vizinhas das artes –Kika realizou uma videocolagem para o espetáculo de dança Disseram que eu era japonesa (2004)– possibilita à artista uma liberdade em manipular e subverter as linguagens de cada um dos meios que utiliza.

Em Windmaker, obra que tecnicamente se pode categorizar como arte digital, a incursão na experiência com a mídia digital e um conjunto complexo de aparatos interligados que configuram um sistema em funcionamento se dá naturalmente no processo de criação da artista. Aqui, não existe um único elemento em excesso, nem existe um deslumbramento pela tecnologia. Cada parte do sistema está a serviço da materialização de um pensamento artístico maduro, e a “novidade” da interatividade vem como decorrência da exploração –tanto técnica quanto conceitual– dos ruídos na percepção padronizada do mundo e da arte, da alteridade e da identidade. Essa colisão com o modo usual de ver marca sua trajetória e nada mais natural que ela aprofunde a pesquisa envolvendo de forma mais direta o espectador de suas obras, explicitando melhor a implicação de cada um no ato de olhar.

Cada pessoa que visitar a instalação Windmaker vai ser co-autora da narrativa que presenciar. Diante de uma série de trechos de um filme organizados segundo a maneira como ele percorrer o ambiente, diante de uma imagem azulada em que uma mulher vaga pela natureza à procura de um sentido, o interator talvez se coloque no mesmo lugar da personagem que tem diante dos olhos. Talvez vague pela sala escura, talvez questione a imagem fria do vídeo e o frio da ventania da sala, talvez perceba como o movimento da luz em partes do filme que têm a imagem desfocada se sobrepõe ao micromovimento corporal da atriz, dando vida para um ambiente de coisas inanimadas, e se identifique com o descompasso entre os próprios micromovimentos de seu corpo e a presença poderosa de uma luz em movimento (o filme), que insufla vida e reflexão a uma mera sala expositiva.

Ensaio para exposição individual 'Windmaker', Sesc Vila Mariana, São Paulo, 2007

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