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OS FANTASMAS DO LUGAR

ALESSANDRA MONACHESI RIBEIRO


A luz azul, da noite alienígena, a luz que torna tudo melancolia azul, natureza azul alienígena melancólica em noite escura e triste, por onde vagueia a mulher dançante, o fantasma do lugar. Cada lugar em que houve vida guarda seus fantasmas, as marcas de vida daquele lugar que passou, a marca de quem passou por ele, marca das histórias que foram. Os lugares morrem como as pessoas, perdem a vida quando a vida das pessoas se esvai e começam a definhar. Os lugares morrem, decaem, como as casas coloniais de um certo Rio de Janeiro que a natureza retoma para si, os musgos recolhendo as paredes tornadas mato, o verde que reabsorve aquilo que o homem criou, deixando apenas ruínas, uma piscina vazia habitada por uma escultura da Iole de Freitas que coloca uma gigante Dora Maar espremida em espaço exígüo, a natureza engolindo a piscina, Dora Maar, as esculturas do jardim do Museu do Açude. Ali, só restam os fantasmas, o silêncio barulhento do lugar, o silêncio habitado de copos, talheres, festas e passos de gente que não existe mais, de tempos que não são mais. A vida morreu ali. A natureza vive e retoma o que lhe foi roubado. Como no Windmaker de Kika Nicolela, o fazedor de vento que agita o fantasma daquele lugar sombrio, azul, extemporâneo, surreal. A mulher fugitiva, que toma forma e se dissolve em movimentos e tecidos. Dança que é quase desespero. Debate-se. A mulher é aparição, assombra o lugar que a assombra, sem medo, nem expressão nenhuma que o desespero de seus movimentos dançantes. A mulher é o fantasma do lugar.

O vento quem faz são os panos de seu vestido de longas mangas. É o corpo que se contorce que faz ventar. O vento é quem traz o som, os cheiros, o gosto daquele lugar gelado, um gosto úmido, triste, pesado, mas também leve e sutil. O gosto quase escapa ao roçar a boca junto com aquele vento. Carrega uma lembrança doce dolorida, da qual o fantasma foge sem poder esquecer.

É a agonia do fantasma do lugar, daquilo que não morre nunca e sobrevive à vida que ali esteve, daquilo que jaz ali sem morrer, memória desesperada da ausência. Quando nasce o sol em Windmaker, a mulher, fantasma do lugar, anda como sombra frente a um lago e montanhas, cenário congelado e sem vida, vida petrificada em um amanhecer infinito diante do qual ela anda. Anda e olha o amanhecer, as montanhas, o céu rosa e amarelo. Que amanhecer é aquele que não apazigua os pesadelos da noite, a luz do luar, o azul alienígena? Que amanhecer que não salva ninguém dos pesadelos da noite, um acordar que não livra do sonho, um fantasma que não desaparece quando se acende a luz?

A mulher, fantasma do lugar, está na água, se dissolve em água, se movimenta na água e a água é, agora, seu movimento, sua dança não mais desesperada, posto que suave. Gelada, a dança enregela os ossos, torna o dia azul melancólico tanto quanto a noite, de uma tristeza suave, mole como água, fluida. Só o rosto fora d’água, de uma Ofélia que se afoga tão lentamente quanto dura sua agonia, um fio esticado em câmera lenta para ver quando irá se partir, o fio / corda do violoncelo que estica a dor até o limite, deixando um choro por dentro, que sempre que aparece volta com aquela música do Windmaker. Choro com trilha sonora, dor que dói por dentro, partindo em pedaços tudo o que existe, deixando apenas os fantasmas vagarem errantes por todos os cantos. Os fantasmas do lugar.

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