EU NÃO ACREDITO NUM DEUS QUE NÃO SAIBA DANÇAR
DANIELA SAMMAD
Kika Nicolela é uma artista “plástica-cineasta”. Sua formação é em Cinema, mas seus filmes são sempre expostos no circuito artístico. Seus vídeos expostos nesta mostra articulam entre as fronteiras do pictórico e do corpóreo.
Em “Passenger”, a mão que segura a câmera e tudo filma é guiada por um olhar desconstrutivo, deformador, desestetizador do olhar claro, do olhar formalista do “bom gosto”; a chuva e a luz incorpóreas são a semântica que rege este borrar de manchas e líquidos. Não temos como não nos lembrar dos artistas Impressionistas. Kika nos faz mergulhar num lago de Ninféas.
Já em “Naked”, o corpo nu dialoga com o concreto corpóreo e rígido da cidade. A pele feita de cimento, o asfalto feito de carne, tudo se interpenetra e nos inebria. O público torna-se privado e o privado público. Nossa experiência como espectadores é regida primordialmente pela sensorialidade, nossos sentidos acordam; buscamos cheiros, e nosso olhar quer raspar o tênue limite da espessura entre o filmado e o sentido.
Em “Poema do Êxtase” a referência ao cineasta Bergman é óbvia, vemos Liv Ulmann, jovem e a atual, a questão primordial aqui é o tempo, o tempo congelado, estagnado. Kika sempre dialoga entre os tênues limites do corpo, do ser e sua alteridade, o alcance de sua identidade no estar e relacionar-se com a natureza, os bichos, os efeitos atmosféricos .
Sua paleta busca sempre este corpo, substantivo e que sempre está em busca de algo.
“Flux” volta a estas mesmas questões, e o ‘filtro’ avermelhado do vídeo anterior encontra-se aqui também - entre nosso olhar e a superfície de Liv ou aqui entre a mulher que dança e flana e o cavalo e a natureza. Muitas referências me vêem a cabeça: o vermelhos de Caravaggio, o modo de filmar de Peter Greenaway, o barroquismo sempre presente nos gestos do corpo, nas luzes, nos líquidos etc.
“Windmaker” novamente coloca a questão da mulher e a busca de si mesma em meio à natureza, ao vento, à água. O vídeo é um verdadeiro poema azulado, feito de manchas tênues, densas e aquosas. Isso que me seduz na obra de Kika, tudo é sempre um pretexto para a artista alcançar questões pictóricas, que ela revela no ato da edição, seu olhar-pincelada que tudo borra, desloca, deforma, disforma e contorna.
O vento nos pincela também.
Já em “Trópico de Capricórnio”, questões sociais dialogam agora com este corpo-produto. A questão aqui é o corpo como produto e suas metamorfoses.
Seus vídeos nos fazem pensar a respeito do lugar que ocupamos no mundo; que sentido buscamos? Através de corpos que se questionam, que andam, que dançam, que flanam, há uma cabeça que não quer se diluir, mas que busca neste fluir através dos vídeos um sentido final, que, como já disse Niezstche, dança na superfície terrestre.
Seus vídeos têm tecitura, são feitos como tecidos que pedem para ser tocados; tem textura, relevo, densidade; parecem feitos de pontos-cruz ou bordados, revelando significados e camadas a serem descobertas. Podemos perceber uma mesma impressão digital que abarca a todos: o corpo, seus versos, reversos e entrenós, seu relacionar-se com o entorno urbano e orgânico.
Dançar e questionar-se é estar e ser neste mundo que habitamos e nos habita.
Não acredito num Deus e também num homem que não saibam dançar.